Livros


Quando eu era pequena adorava chupas, rebuçados e limonadas muito doces. Aos catorze anos passava dias inteiros de Verão a tostar na praia, imóvel como uma baleia (esquelética) que tivesse vindo dar ao areal e dali não saísse. Não há amor como o primeiro, diz-se. Mas as minhas paixões por doçuras enjoativas, pelo sol esturricante, perdi-as para sempre. Uma delas, no entanto, mantenho desde os seis anos: ler. Mal aprendi a ler, descobri o vício mais difícil de perder que existe e continuo a ser a menina míope que enfiava a cabeça num livro e ficava cega e surda a tudo o que a rodeava.

Li Heidi, a história de uma menina que vai viver com o avô para uma montanha na Suíça. Era um livro grande e grosso, tinha capas duras e ilustrações a cores, tinha uma menina boazinha, a Clara, um menino simpático, o Pedro e, claro, uma heroína cheia de atrevimento, a Heidi.

Li a série "Anita". A anita não era bem como eu. É certo que partilhavamos o nome e ela, como eu, ia à praia e ao campo, ia à escola e ia às compras com a mãe; mas eu imaginava que ela tinha um fornecimento inesgotável de chupa-chupas de limão (já nessa altura, embora me agradasse a doçura, gostava dela com um travo de acidez).

Li as aventuras dos "Cinco", dos "Sete", das "Gémeas", muitos livros que era um só, todos produzidos por uma empresa chamada Enid Blyton, especializada na criação de um mundo agradavelmente esquematizado.

O tio Patinhas, o pato Donald e os sobrinhos, o Pateta, o Mickey e a namorada preenchiam os momentos em que não tinha mais nada para ler.

Os gémeos espartanos, Marie Curie, Davi Crockett, Vasco da Gama e Daniel Boone, conviviam nas minhas estantes e na minha cabeça, e revelavam-me outras maneiras de viver.

Continuei a ler.

Júlio Dinis, conservador e simples, que conhecia melhor do que eu a aldeia da minha avó e as suas personagens de romance.

De Camilo, com a sua acidez minhota, matreira, lia pedaços, saltava páginas e páginas. Já li vezes sem conta o texto em que parodia o Guia de Viajante em Braga (in Novelas do Minho) e rio-me sempre quase até às lágrimas.

Eça de Queiróz (havia dois: um bonzinho que tinha escrito O Suave Milagre, e o autor de Singularidades de uma Rapariga Loira, alguém bastante menos "catequista".

Vergilio Ferreira, Aparição. Li este romance aos doze anos e perturbou-me a personagem que repete em frente ao espelho "galinha". Nunca mais voltei a lê-lo.

E lia romances históricos, franceses, de aventuras, existenciais, páginas e páginas do Manual de Etiqueta e Civilidade da Condessa de Gencé, um tratado de silvicultura ou a lista das marcas das máquinas que recomendavam o detergente lá de casa quando não havia mais letras à minha volta para eu juntar e formar sentidos.

Sem ordem, sem método, sem acompanhamento nem censura. Li muito, li muito mal - de esguelha, não chegando ao fim, saltando páginas, sem fazer ficha de leitura nem prestar atenção ao estilo. Li pelas razões erradas e para fins reprováveis: escapismo, desculpa para não estudar ou não ajudar em casa. E o pior (ou melhor) é que continuo a ser esse tipo de leitora. Porquê? Porque posso, todos podemos. Os livros permitem-nos estas liberdades. Não se zangam se não formos ter com eles quando deviamos ou chegarmos atrasados, se abandonarmos a Anita no caminho para a escola, se tratarmos o concelheiro Acácio sem o respeito que julga merecer e lhe fecharmos o livro na cara, se os traírmos até. Mas como amigos indigentes que são, os livros merecem que não os abandonemos de todo. Merecem ser tirados da estante de vez em quando, para as suas páginas arejarem e ganharem nova vida.


Ana Saldanha, em Mini Biblioteca Essencial Fnac

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